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Áreas Úmidas e Escassez Hídrica: A Atuação da UFMT-INAU no Cenário Nacional e Internacional.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Wolfgang J. Junk & Paulo Teixeira de Sousa Jr *  As Áreas Úmidas (AUs) cobrem cerca de 20% do território brasileiro, tendo papel importantíssimo no ciclo hidrológico, pois estocam o excesso de água durante as chuvas pesadas, para, logo a seguir, promover a lenta liberação deste líquido para os riachos e rios, diminuindo desta forma os riscos de inundações e secas extremas e fornecendo água limpa para o meio ambiente e o ser humano.  Além disso, ajudam no reabastecimento do lençol freático e influenciam de maneira positiva o clima local e regional.
Em meados do século XIX, o Imperador Dom Pedro II declarou a proteção das nascentes d‘água doce nas montanhas da cidade de Rio de Janeiro e mandou plantar entre 1862 e 1874, 72 mil mudas de arvores frutíferas exóticas e espécies naturais. A floresta da Barra da Tijuca com alta biodiversidade é uma floresta plantada, para fins de proteção dos recursos hídricos. Atualmente, não dá para imaginar o que seria o Rio de Janeiro sem essa floresta!

Infelizmente, parece que esquecemos as lições desta ação pioneira. Os aspectos ecológicos do manejo dos recursos hídricos têm sido sistematicamente desconsiderados; exemplos claros são os rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo. Propostas para enfrentar a escassez hídrica na região de São Paulo e em outras regiões brasileiras restringem-se a soluções técnicas. Sem dúvida alguma, muitas destas ações, tais como a renovação da rede de distribuição de água, para reduzir as perdas entre a fonte e o consumidor (que pode chegar a 60% da produção), o tratamento de esgotos, para manter a água limpa e diminuir os gastos para o tratamento, e o aproveitamento da água de chuva nos centros urbanos, são essenciais. Outras propostas técnicas, que só combatem os sintomas da crise mas atacam as raízes do problema, devem consideradas inapropriadas; dentre estas destaca-se a transposição de água entre bacias hidrográficas, ou o maior aproveitamento dos recursos hídricos subterrâneos. Não se resolve o problema da destruição dos recursos hídricos superficiais em uma bacia hidrográfica pela transferência do problema para outras bacias ou pela destruição dos recursos subterrâneos. A raiz do problema encontra-se no uso inapropriado das terras e aqui principalmente na destruição das AUs, que forneçam água em boa qualidade para o meio ambiente e o homem, como já observado há 150 anos pelo Imperador Dom Pedro II.

Além disso, o Sudeste e o Nordeste do país estão sofrendo uma seca multianual pesada. Estudos recentes da NASA mostram que o Sudeste perdeu 56 trilhões de litros de água e o Nordeste 49 trilhões de litros em cada um dos últimos três anos em comparação com anos normais. Com as mudanças climáticas, estes períodos extremos vão acontecer no futuro com mais frequência, sublinhando a necessidade de ações drásticas e imediatas para a proteção dos recursos hídricos, entre outros a proteção das AUs brasileiras..

A convenção internacional, que trata do manejo das AUs é a Convenção de Ramsar. Ela formulou para os países signatários seis maiores critérios para a conservação de AUs de importância internacional:
1: Apresentar uma definição de AUs
2: Elaborar uma classificação de AUs
3: Avaliar as condições das AUs
4: Implementar o uso sábio das AUs
5: Implementar políticas nacionais para a proteção das AUs
6: Manejar as AUs e monitorar as suas características

Em 1993, o Brasil assinou esta convenção (promulgada pelo Decreto nº 1.905, de 16 de maio de 1996), que pressupõe uma política nacional para a gestão inteligente (wise management) e proteção das AUs e sua biodiversidade. Entretanto, até o presente, o Estado Brasileiro fez pouco para satisfazer os compromissos assumidos ao assinar esta importante convenção. Os problemas com a definição, o delineamento e a classificação das AUs brasileiras surgiram durante a discussão sobre o Novo Código Florestal. A discussão só tratou das florestas. O impacto negativo do Novo Código Florestal para as AUs e os recursos hídricos nacionais não foi considerado. Representantes do INAU e do INPA chamaram a atenção dos parlamentares para este problema, participando, inclusive, de audiências no congresso. Como àquela época ainda não havia uma definição brasileira para AUs, o tema não pôde ser incluído no novo código florestal.

Esta situação é inaceitável. Por um lado, o setor agropecuário usa cerca de 70% da água disponível; por outro lado, parte influente deste mesmo setor pressionou por uma legislação que facilita a destruição das AUs. A destruição da vegetação ripária natural ao longo dos córregos e pequenos rios nas áreas de cerrado já resultou no periódico ressecamento dos mesmos na época seca. O rebaixamento do lençol freático, vem passando despercebido, mas vai no futuro criar problemas seríssimos para a agricultura, como foi demostrado no estado de Califórnia nos Estados Unidos. Naquela região, a exploração abusiva dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos começa a inviabilizar a agricultura tradicional.

A Resolução CNRH No 145, de 12 de dezembro de 2012, (publicada no D.O.U de 26/02/2013) do Ministério do Meio Ambiente/Conselho Nacional de Recursos Hídricos, estabelece diretrizes para a elaboração de Planos de Recursos Hídricos de Bacias Hidrográficas e dá outras providencias, mas não apresenta uma definição, do que pode ser considerado como recursos hídricos. AUs não são mencionadas no texto, mas elas cobrem cerca de 20% do território brasileiro!

Para atacar este problema, o INAU assumiu a liderança na formação de um consórcio de cientistas de alto nível para (1) tratar de assuntos de AUs em nível político-cientifico, e para (2) subsidiar o governo com recomendações sobre políticas públicas de AUs [e.g. colaboração com o Conselho Nacional de Zonas Úmidas (CNZU) do MMA]. Este consórcio elaborou três definições e uma classificação das AUs brasileiras, tendo levado esta proposta ao Ministério do Meio Ambiente:

A recomendação CNZU  no 7, de 11 de junho de instrui ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) que aprecie a proposta de conceito de recursos hídricos, elaborada pelo consórcio acima mencionado e que inclui todos tipos de AUs. Além disso, é recomendado aos órgãos, entidades e colegiados relacionados à formulação de políticas  e legislação e a conservação de AUs brasileiras que (1) adotem a definição das AUs e o seu delineamento e (2) adotem o sistema de classificação de AUs Brasileiras, elaboradas pelo consórcio.

“Recursos Hídricos abrangem a água de chuva e todos os corpos de água, naturais e artificiais, superficiais e subterrâneos, continentais, costeiros e marinhos, de água doce, salobra e salgada, parados (lagos e águas represadas) e correntes (rios - intermitentes, efêmeros ou perenes - e seus afluentes, hidrovias e canais artificiais), e todos os tipos de áreas úmidas, permanentes e temporárias.”

“Áreas Úmidas (AUs) são ecossistemas na interface entre ambientes terrestres e aquáticos, continentais ou costeiros, naturais ou artificiais, permanentemente ou periodicamente inundados por águas rasas ou com solos encharcados, doces, salobras ou salgadas, com comunidades de plantas e animais adaptadas à sua dinâmica hídrica.”

“A extensão de uma AU é determinada pelo limite da inundação rasa ou do encharcamento permanente ou periódico, ou no caso de áreas sujeitas aos pulsos de inundação, pelo limite da influência das inundações médias máximas, incluindo-se aí, se existentes, áreas permanentemente secas em seu interior, habitats vitais para a manutenção da integridade funcional e da biodiversidade das mesmas. Os limites externos são indicados pelo solo hidromórfico, e/ou pela presença permanente ou periódica de hidrófitas e/ou de espécies lenhosas adaptadas a solos periodicamente encharcados”.

O fato é que esta definição de delineamento das AUs estabelece o limite das AUs pelo limite da influência das inundações médias máximas, como era determinado no antigo código florestal. Isso contradiz a definição estabelecida pelo Novo Código Florestal, que se baseia no “leito regular“, que é definido como “a calha por onde correm regularmente as águas do curso d’água durante o ano“; quer dizer, na água baixa, o que deixa a maior parte das AUs ao lado dos riachos e rios desprotegidas.

Com a sua recomendação, o CNZU concorda com a argumentação do consórcio, o que significa, em outras palavras, que em AUs periodicamente alagadas, eventos hidrológicos extremos são necessários para a reorganização das comunidades de plantas e animais.  Além disso, o CNZU concorda com o argumento de que para as populações humanas vivendo dentro e ao redor destas áreas, eventos hidrológicos extremos podem resultar em catástrofes econômicos e sociais. A ocupação do espaço tem que levar em consideração, que situações extremas vão ocorrer no futuro e com maior frequência, como já vêm demonstrando as mudanças climáticas.

Adicionalmente, a definição inclui áreas permanentemente secas no interior das grandes AUs, que comprovadamente são habitats vitais para a manutenção da integridade funcional e da biodiversidade das mesmas. Isso garante proteção explícita para macrohabitats-chaves terrestres, tais como capões e cordilheiras no Pantanal Mato-grossense.

O pulso de inundação é o fator principal que determina as condições ecológicas em áreas alagáveis em geral e  na grande maioria das AUs brasileiras. Frequência, duração, profundidade e previsibilidade das inundações e secas influenciam a ocorrência, a distribuição e os ciclos de vida dos organismos nas AUs. Outros fatores são o clima, (trópicos úmidos versus savanas), e a qualidade da água e dos solos. Os melhores indicadores para as condições ecológicas das AUs e seus macrohabitats são as plantas superiores, por conta da sua fixação no local. Plantas herbáceas caracterizam as condições em períodos de semanas,  meses e poucos anos, plantas lenhosas em períodos de anos, décadas e centenas de anos.

Para a classificação, as AUs brasileiras foram separadas em três níveis hierárquicos: (1) sistemas; (2) unidades definidas por fatores hidrológicos; (3) unidades definidas por plantas superiores. O primeiro nível hierárquico foi diferenciado em 3 sistemas: (1) AUs costeiras; (2) AUs interiores; (3) AUs antropogênicas.
AUs costeiras são todas as AUs naturais, permanentes ou temporárias, com água doce, salobra e salgada, sob influência direta do regime de marés, de intrusões salinas, ou de deposição atmosférica de substâncias dissolvidas ou particuladas, ou de propágulos do Oceano.
AUs interiores são todas as AUs naturais, permanentes ou temporárias, com água doce, salobra e salgada, que se encontram dentro do país e fora da influência direta ou indireta do mar.
AUs antropogênicas são todas as AUs, costeiras ou interiores, que resultam da atividade humana, seja de forma ordenada (e.g., tanques de piscicultura, açudes, plantios de arroz em tabuleiros) ou não ordenada (como as AUs no entorno de represas hidrelétricas, represamentos pela construção de estradas, tanques de empréstimo).

O segundo nível hierárquico baseia-se em parâmetros hidrológicos e é composto por subsistemas, ordens e  subordens. A diferenciação em ordens e subordens dá ênfase à dinâmica hidrológica, que é o principal elemento da definição das AUs, e por isso tem a função chave na classificação. Ela demonstra a grande diversidade hidrológica das AUs naturais interiores brasileiras. Para grandes áreas alagáveis foi  introduzida a categoria “unidade funcional”, para melhor abordar a grande diversidade das condições hidrológicas nestes ecossistemas.
A menor unidade da classificação é o macrohabitat, que é definido como “unidade de paisagem nas respectivas AUs, sujeita a condições hidrológicas similares e coberta com uma especifica vegetação superior característica, ou, na sua ausência, sujeita a um meio ambiente similar, terrestre ou aquático”.

A grande diversidade de macrohabitats em AUs é uma caraterística inerente destes sistemas, e tem que ser mantida. Métodos de manejo tem que adaptar-se a esta situação em vez de tentar adaptar os sistemas a métodos de manejo simplificados, que são altamente destrutivos. A argumentação, que o grande número de macrohabitats complica o manejo das respectivas AUs não corresponde com a realidade. Com 57 macrohabitats, o Pantanal é mais diverso dentre todas as grandes AUs brasileiras. Reforçando a nossa afirmação, um estudo do INAU mostrou que os fazendeiros tradicionais reconhecem todos estes macrohabitats e dão a eles um valor especifico para o gado, para a vida silvestre e para o fluxo da água. Além disso, há concordância entre estes fazendeiros com  relação às recomendações de manejo, baseadas nos macrohabitats.

No dia 12 de agosto houve no plenário 3 da Câmera dos Deputados uma  Audiência Publica destinada a debater “O Futuro das Áreas Úmidas Brasileiras. Participaram da mesa de debates o eram o INAU/UFMT (expositor), representado pela Dra. Catia Nunes da Cunha, o Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNZU), a Embrapa Pantanal, o Ministério de Meio Ambiente, a Agencia Nacional de Águas e o WWF-Brasil. Todos os integrantes concordaram com as definições e conclusões apresentadas pela representante do INAU-UFMT. Os parlamentares pediram a elaboração de propostas concretas para melhorar a legislação ambiental tratando das AUs. Esta tarefa está prevista para a segunda fase do INAU, já proposta e atualmente em avaliação pelo MCT/CNPq.  O plano de trabalho do INAU II contempla o “Levantamento, a caracterização e o delineamento de AUs Nacionais Emblemáticas de Porte Médio”. Instituições de 6 estados concordaram em colaborar com o INAU nesta importante tarefa.


Em outubro de 2015 houve um workshop em Cartagena, Colômbia, organizado pelo Instituto Humboldt para elaborar uma classificação das AUs daquele país. O coordenador cientifico do INAU-UFMT, Dr. Wolfgang Junk, foi convidado pelos colegas colombianos para participar como conselheiro. No final da reunião, os participantes concordaram na aceitação de uma classificação das AUs colombianas, que é diretamente compatível com a classificação brasileira. Atualmente o sistema desenvolvido pelo consórcio liderado pelo INAU-UFMT está em discussão entre colegas da Venezuela e da Argentina, que estão avaliando a possibilidade de aplicar esta abordagem também para as AUs daqueles países. Isso seria um passo importantíssimo para uma classificação uniformizada das AUs da América do Sul, que iria facilitar estudos comparativos e a elaboração de uma politica ambiental coerente, já que muitas AUs grandes são transfronteiriças, e.g. o Pantanal Mato-grossense.

Novas abordagens e desafios:
Atualmente, cientistas do INAU-UFMT estão fortemente envolvidos na discussão da Lei do Pantanal, dando suporte à Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA), para o levantamento das AUs de médio e pequeno porte, de importância para o estado de Mato Grosso.

Outro grupo multinstitucional vai colaborar na formulação de uma legislação moderna e justa sobre o manejo e a proteção das AUs brasileiras, que incorpore a diversidade cultural e de biomas do país. Este é um caminho árduo, mas inevitável para resolver a médio e longo prazo a crise hídrica que vem sendo observada em algumas regiões do país, evitando-se que outras regiões do país padeçam por conta de problemas evitáveis.

* Wolfgang J. Junk & Paulo Teixeira de Sousa Jr são pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INAU-UFMT)

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